Por Thiago Canettieri

É um enorme prazer dividir com a colega e amiga Isadora Guerreiro a coluna Cidades do Passa Palavra. Como Isadora já havia dito em sua estreia, essa coluna tem o objetivo de “entender o urbano como elemento relevante das lutas atuais”. Sigo, portanto, a trilha aberta pela Isa para pensar a historicidade do componente urbano das lutas a partir de debates que este site vem promovendo.

O primeiro ponto que gostaria de ressaltar, de alguma maneira já atravessou minhas outras intervenções aqui e aqui, é o lugar que a crise urbana ocupa e como esse contexto modula as lutas sociais.

Aqui quero considerar essa crise urbana menos como um resultado das ações políticas de agentes racionais, como sugere Ermínia Maricato [1], e mais como um desdobramento das contradições de formas sociais historicamente constituídas.

O urbano é um produto do capitalismo [2]. Com o capitalismo, a determinação da coexistência dos indivíduos, isto é, a mediação historicamente determinada e espacializada no urbano se baseou na categoria de reconhecimento social por meio da forma do valor. A Europa tornou-se o berço da urbanização moderna com a lógica da reprodução ampliada do capital, e a cidade industrial nasceu da submissão da produção do espaço às novas formas sociais em ascensão. O urbano, dessa maneira, deve ser pensado como o espaço de valorização do valor, e, por consequência, deve-se entender a urbanização como causa e efeito do processo que preside a valorização da riqueza social em mercadorias. A sociedade baseada na metafísica social da valorização do valor, que se reproduz a partir da objetivação sistemática da riqueza social em mercadorias, imprimiu ao mundo uma dinâmica de transformação própria que incluiu a urbanização moderna [3].

Essa realidade conformou lutas sociais, enquadrando os seus horizontes de expectativas. Joshua Clover [4], em sua análise sobre a historicidade das lutas, propõe uma leitura dos tipos paradigmáticos de cada período histórico. Antes da Revolução Industrial, a forma de luta mais comum nas sociedades europeias era a forma dos levantes [riot], que buscava baixar os preços dos meios de consumo com tumultos e saques em mercados e portos. Com a forma social propriamente capitalista já generalizada, isto é, sobre seus dois pés, a forma de luta se deslocou em direção a fábrica (e, vale adicionar, em direção a cidade): a luta assume a forma das greves [strike]. As lutas passaram, assim, a interagir com o ambiente da produção e o principal objetivo, segundo o autor, seria buscar o aumento do preço da força de trabalho.

O longo período de ascensão e consolidação da mediação social pelo valor significou a hegemonia quase total dessa forma social sobre as formas de reprodução. No mundo ocidental desde o final do século XIX até o final da segunda metade do século XX essa forma de luta se tornou a mais preponderante. Aqui, interessa destacar, sobretudo, os movimentos e lutas que tinham como objetivo fazer com que a questão social ganhasse relevância, entendida como uma forma de elevação do salário indireto a partir da mobilização do fundo público [5].

E aqui, a cidade teve uma função fundamental. O espaço urbano seria, dessa maneira, o lugar privilegiado do consumo capitalista, isto é, da reprodução da força de trabalho [6]. As formas hegemônicas de luta se organizavam na disputa do fundo público para a produção do espaço urbano, ampliando esse salário indireto – essa relação entre as lutas sociais e suas demandas enformou e deu régua e compasso para um certo padrão de urbanização que prevaleceu até a década de 1970, ao menos no Norte Global [7].

Nos países da periferia do capitalismo a condição era outra, o que resultou em outro padrão de urbanização. Por aqui, dada a forma de engate subalternizado ao mercado mundial, nunca se formou uma massa de mercado consumidor necessária para a reprodução ampliada do capital. Uma enorme população sobrante às necessidades do capital e um regime de hiperexploração: as necessidades da reprodução material da população em países periféricos seriam, portanto, satisfeitas por lógicas “pré-capitalistas”, “arcaicas” – claro, devidamente funcionalizadas para a expansão capitalista pelos países periféricos [8]. Para confirmar essa realidade, bastaria observar a diferença das paisagens proletárias entre o norte e o sul global: os trabalhadores do norte residindo em conjuntos habitacionais, uma considerável parcela produzida pelo Estado; e os trabalhadores do sul, residindo em áreas periféricas autoconstruídas [9].

Contudo, a realidade da constituição do capitalismo na periferia do capitalismo estaria, de alguma maneira, sendo traduzida, por muitas lutas sociais, como um problema de formação do salário indireto a partir do fundo público. Bastaria ver como um amplo espectro de lutas sociais aqui no Brasil (da luta contra a carestia até a constituição do Movimento Nacional de Reforma Urbana) passaria por um certo ideal: garantir as condições ideais para a reprodução da força de trabalho. Durante os anos 1970 e 1980 (e aqui, o horizonte da redemocratização é informativo deste processo), o horizonte de boa parte das lutas sociais estaria impregnado pelo paradigma de um sujeito político: trabalhador assalariado e proprietário, mesmo que periférico (e informal – tanto no trabalho, quanto na propriedade, mas isso seria apenas um detalhe).

Entretanto, a maior parte da população brasileira não integrava esse circuito, o que não deixava de produzir uma ambiguidade constitutiva da ação política. Mas não é meu ponto aqui fazer uma historiografia dessa contradição e apontar seus efeitos e desdobramentos. Por ora, meu interesse é apontar que esse quadro da relação entre “o urbano e as lutas sociais” deve ser alterado para acompanhar a mudança histórica do tecido social organizado pelo capitalismo [10].

Essa realidade foi alterada pelo desenvolvimento da crise interna e absoluta do capital [11]. A partir dos anos 70, o sistema capitalista aprofundou sua crise. Segundo a teoria de Marx [12], o capitalismo é uma contradição em processo, pois ao buscar acumular mais-valia, acaba por reduzir o uso do trabalho vivo na produção de valor, afinal, o capital busca constantemente reduzir o uso do trabalho vivo no processo produtivo pela introdução de novas técnicas de produção poupadoras de trabalho. Em seu próprio movimento de reprodução ampliada, o capital produz sua dessubstancialização. Esse processo pode até gerar lucros iniciais para capitais individuais específicos, mas a longo prazo leva ao decaimento da massa total de trabalho empregado.

A transformação resultante do colapso do capitalismo, que afeta não apenas as formas de sociabilidade, mas também a produção do espaço e a vida cotidiana. Antes, a integração ao mundo do trabalho era o critério definidor da política e, também, das lutas, mas agora o trabalho está sendo destruído. “O consenso do trabalho foi para o brejo, significando, é claro, que as pessoas — transformadas em sujeitos monetários pela imposição da forma social do capital — agora devem se virar para continuarem sobrevivendo” [13]. Trata-se de um processo de dissolução de uma forma social, a forma do valor [14].

Quero aqui chamar atenção que a mudança da era geológica do capital, do momento de sua constituição para seu momento de crise, transformou sobremaneira o horizonte das lutas sociais.

Se existiu um contexto em que predominava nas lutas sociais urbanas a figura do trabalhador assalariado e potencial proprietário, esse tempo já passou. A realidade social do mundo em crise é reconfigurada: a imagem do trabalho, erodida pela crise do capital, foi substituída por empregos precários, “bicos”, e outras formas de sobrevivência num contexto de uma “vida sem salário” [15]. Todo esse processo está profundamente associado à transformação do espaço urbano e do processo de urbanização. De certa maneira, é a reprodução social periférica que informa o futuro dos países centrais, alterando o sinal da concepção corrente da difusão do horizonte de expectativas [16].

Isso significa que as lutas sociais urbanas mudam de figura e agora devem conviver com a crise que se aprofunda. Seguindo novamente a formulação de Clover, o período contemporâneo seria caracterizado por lutas, novamente, na forma de levantes [riots]. Com uma natureza organizativa completamente diferente da época fordista – de um certo “trabalho com forma” -, as lutas contemporâneas são marcadas por sua fragmentação, efemeridade e que parecem não acumular, contrariando o princípio da estratégia da esquerda tradicional de ‘acumular forças’. Essa “luta de classe sem forma” [17] é, portanto, análoga, ao contexto contemporâneo de um “trabalho sem forma” [18].

Para mantermos a “disformidade” que atravessa o predicamento contemporâneo, poderíamos dizer que o urbano, hoje, também é um “urbano sem forma”. Muitas publicações no campo dos Estudos Urbanos ressaltam a metrópole fragmentada, dispersa, disforme, etc. Sem a pretensão de resolver o enigma dessa esfinge, acho que a principal “orientação” que devemos manter é que hoje já não há mais possibilidade de reunir urbanização e industrialização num par coerente, sem fissuras [19]. Isso significa que o desenvolvimento da crise do capital bloqueia definitivamente a possibilidade de retornar à forma de organização da luta social dada na época do fordismo. É necessário um outro ponto de vista capaz de dar conta da realidade tal qual ela se apresenta hodiernamente. É preciso organizar as lutas a partir de outros lugares que estejam além da clássica identidade imediata do trabalho sindicalizado [20] (e não estejam aquém dos desafios interpostos pelo cenário de crise).

Assim, noticiar, pensar e apoiar as lutas urbanas continua sendo uma das tarefas mais urgentes. As lutas estão sempre sob o risco de serem engolfadas pelo fascismo ou então se tornarem mais uma engrenagem na engenharia social de gestão da barbárie. Dependerá da capacidade de um horizonte anticapitalista e antinacionalista construir juntos das lutas as possibilidades de uma transformação social.

Notas

[1] Ermínia Maricato, Para entender a crise urbana (Expressão Popular, 2015).
[2] Henri Lefebvre, Revolução urbana (Ed. UFMG, 2019).
[3] Bruno Lamas, A explosão da cidade e a trajetória do capitalismo. In: Imprópria (Org.). Pensamento crítico contemporâneo e a cidade. (Unipop, 2007).
[4] Joshua Clover, Riot. Strike. Riot: the new era of uprisings. (Verso, 2016).
[5] Robert Castel, As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário (Vozes, 1998).
[6] Manuel Castells, A questão urbana (Paz & Terra, 2020).
[7] Manuel Castells, The city and the grassroots: a cross-cultural theory of urban social movements (Edward Arnold, 1983).
[8] Francisco de Oliveira, Crítica da Razão Dualista / O ornitorrinco (Boitempo, 2003).
[9] Ermínia Maricato, A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial (Editora Alfa-Omega, 1979).
[10] Edemilson Paraná & Gabriel Tupinambá, Arquitetura de Arestas: as esquerdas em tempos de periferização do mundo (Autêntica, 2022).
[11] Robert Kurz, Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política (Antígona, 2014).
[12] Karl Marx, O capital: crítica da economia política (Boitempo, 2013).
[13] Thiago Canettieri, Da forma-valor à forma-periferia (Passapalavra, 2022). Disponível em: https://passapalavra.info/2022/05/143800/
[14] Novamente, não poderei desenvolver aqui esses efeitos e como eu interpreto-os. Entretanto, diferentemente das pontas soltas anteriores, este tema foi abordado nos textos de minha intervenção nessa coluna citados no primeiro parágrafo.
[15] Michael Denning, Wageless life (New Left Review, n.66, 2010).
[16] Paulo Arantes, A fratura brasileira do mundo: visões do laboratório brasileiro da mundialização (Editora 34, 2023); Thiago Canettieri, A condição periférica (Consequência, 2020).
[17] Grupo de militantes na neblina, Incêndio: trabalho e revolta no fim de linha brasileiro (Contrabando, 2022).
[18] Francisco de Oliveira, Crítica da Razão Dualista / O Ornitorrinco (Boitempo, 2003).
[19] Francisco de Oliveira, Crítica da Razão Dualista / O Ornitorrinco (Boitempo, 2003).
[20] Thiago Canettieri, Quando o silêncio fala mais alto: comentários sobre o #brequedosapps (Passa Palavra, 2021). Disponível em: https://passapalavra.info/2021/09/140272/

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